Maiores do que todos os perigos físicos são os efeitos tremendos das idéias ilusórias às quais nossa consciência mundana nega qualquer realidade.
– Carl G. Jung. – A Natureza da Psique
1. Não se trata do que eu penso, mas de um sentimento. Assim falamos quando as coisas vão além da lógica e passam a ganhar um valor. Valor positivo ou negativo, bem ou mal, certo ou errado, melhor ou pior, etc. Para o Tipo Sentimental esta é sua função psicológica predominante, aquela através da qual sua relação com o mundo se estabelece e concretiza. Marcos é deste tipo. Sua ligação com a realidade se faz de uma forma natural e sem questionamentos, como se a vida não pudesse ou não precisasse ser de outra forma. As diversões do mundo, os hábitos do mundo, os sonhos do mundo, têm sempre algum espaço em seu coração, uma vez que conectam os indivíduos pelos elos do sentimento, função coletiva por natureza.
2. Um valor coletivo é determinante para um Extrovertido Sentimental. Ele jamais questionaria, por exemplo, o valor da família, da fidelidade, do sacrifício e do amor. Somente um Pensativo pode, sem que lhe cause nenhum mal-estar ou desconforto, repensar o conceito de família ou simplesmente abandoná-lo em favor de uma disposição individualista. O sentimental somente aceitaria tal abandono se fosse em favor de algum outro valor coletivo. Abnegação, dedicação a uma causa, celibatrismo religioso, por exemplo. Há santos que abandonaram mulher e filhos para se tornarem santos! O sentimento acolhe com piedade tal gesto de “sacrifício”. Afinal, a santidade é boa, e pronto.
3. Para Marcos a importância das pessoas também se relaciona com o sentimento que inspiram. Não há porque pensar em outras qualidades, em outras motivações ou intenções, se a pessoa lhe inspira algo de ruim. Seria hipocrisia, por exemplo, permanecer numa relação em que o outro é um cretino, egoísta ou orgulhoso. Para outros temperamentos, uma relação como esta pode muito bem ser levada por anos há maneira de um negócio, um comércio ou um acordo simplesmente. Mas o sentimental não teria “estômago”.
4. Obviamente esta relação predominamente com o mundo através do sentimento, se faz através da exclusão de uma parte considerável da natureza humana, assim como a exclusão de certos pensamentos que podemos ter a respeito do outro, de certas idéias sobre como nós e a vida poderíamos ser. Não há dúvida que inúmeras qualidades e defeitos permanecem, em parte, ou completamente, ignorados para o Tipo Sentimental, da mesma forma como o Pensativo costuma desconhecer todo um mundo de experiências afetivas, de relações e carinhos, que seu sentimento infantil afasta por medo ou indiferença.
5. Marcos, por exemplo, nem mesmo gostaria de saber quais são as reflexões que se pode fazer sobre certos assuntos “filosóficos demais”. O certo e o errado já está muito certo e delimitado pelos valores que tem “preservado” a sociedade. Tais valores, porém, podem caracterizar um forte abuso moral, além de limitação da felicidade individual, quando falamos de casos particulares. Isso se faz mais claramente doloroso no que se refere a visão que temos de nossos pais e das escolhas que fizeram. Não há dúvida que o sentimento obscurece ou ilumina demais o conceito que temos sobre os mesmos. Olhar um pai e mãe como simples seres humanos é uma tarefa díficil para qualquer mortal, mas se torna uma proposta angustiante para um sentimental típico.
6. O sonho de Marcos, por isso mesmo, coloca-o numa situação simbólica, mas que expressa diversos elementos do ambiente psicológico em que ele vivia inconscientemente. Há algum tempo se preparava em seu inconsciente a necessidade de um choque ou confronto, para que levasse em consideração aquele outro lado das coisas e das pessoas que ele havia deixado de fora em seus julgamentos habituais. Inteligente e educado como é, não havia necessidade de olhar as situações sobre outros pontos de vista. Neste período de sonambulismo ele estava, não por coincidência, realizando aquilo que os centros espíritas chamam de “desenvolvimento medíunico”. Era considerado pelo dirigente da reunião um “médium entupido”, pois estava “envolvido” pelos espíritos, mas não dava comunicação. Obviamente a mediunidade exigia um nível de inconsciência e introspecção difíceis de serem alcançadas por um extrovertido. Ligado a realidade externa a qual dedica toda sua energia, precisa de um doloroso treinamento para tomar contato com um “outro lado” a qual desconhece ou nem toma contato no seu dia-a-dia. A “realidade espiritual” só lhe faz sentido se for, de fato, uma outra realidade, tão física quanto a nossa a qual ele possa tocar e se relacionar. A subjetividade do Introvertido, sua intimidade consigo mesmo, a falta de ligação com o mundo, o culto da própria alma, parece uma forma de comportamento egoísta e sem sentido para o extrovertido, que procura por valores no mundo, dividindo-os com o mundo.
7. Não havia forma melhor do inconsciente de Marcos se apresentar a ele, senão dizendo: olá, estou aqui e sou mais do que um sonho. De fato, é significativo que sua experiência tenha ocorrido após ele dormir dentro de um sonho. Para a maioria das pessoas o sonho não passa de fantasia. A intenção parece ter sido lhe deixar claro a diferença, pois os conteúdos do inconsciente tem sua realidade própria e deveriam, no mínimo, serem colocados na mesma condição de nossa realidade física. Se quisermos mostrar para uma pessoa a força destes contéudos, basta exibir as barbáries cometidas de forma coletiva, ou na solidão de laboratórios refinados, durante a Segunda Guerra Mundial. Os valores do mundo caíram como se fossem meras fantasias perante as forças descomunais de um insconsciente longamente reprimido e “educado”. Podemos ler e reler as páginas da história procurando uma explicação lógica ou um bode expiatório para o que ocorreu nesta guerra, mas nada justificaria, por exemplo, que cientistas, a título de melhoria de raça, abrissem cirurgicamente uma pessoa ainda viva e tentassem juntar seus nervos com os de outra pessoa para ver os resultados. Os valores que normalmente nos abalam, o sentimento inspirado pela dor e sofrimento do outro, parecem completamente ausentes nestes casos, uma vez que generais, ou mesmo soldados, nem sempre estavam sob as ordens diretas de seus superiores e muito menos sob pressão.
8. Nesta “viagem psíquica” de Marcos, “Pedro”, seu irmão, parecia ser o mesmo, mas a personalidade diferia. Os sonhos costumam utilizar esta troca de formas, onde o marido se torna pai, o pai se torna filho, como a ressaltar a imagem que projetamos nas pessoas. Observar os outros além de suas “personas” não é tarefa fácil, mas foi um exercício menos doloroso para Marcos, no que se refere ao seu irmão. Quando a imagem que projetamos em alguém é superada, temos, de fato, a impressão de que não a conhecíamos realmente, de que havia um lado ignorado. Por isso seu raciocínio na hora, de que ele mesmo era um espírito atuando sobre o corpo de outra pessoa, pois confrontar-se com a psicologia de alguém, ir além de nossas ilusões a respeito do outro, também nos faz refletir sobre nossa própria dualidade. Quando olhamos a realidade de uma forma diversa, devido a alguma transformação íntima, temos o hábito de afirmar: “sou um homem novo”. Tais experiências costumam ser místicas e são compartilhadas por muitas pessoas que passam por processos de quase-morte. São conhecidos os casos em que sobreviventes retornam com uma visão de vida completamente diferente.
9. Se observar o outro lado de “Pedro” foi uma tarefa razoalvemente fácil de lidar, aceitar a o lado oculto de seus pais foi uma tarefa aparentemente árdua demais proposta pelo inconsciente, o que já se refletia no próprio estress que Marcos carregava ao ir dormir. Foi como se o terreno estivesse preparado, cuidadosamente, para que Marcos encarasse (ou não) a mais dura realidade, para qualquer ser humano: ter que reconhecer que não conhece os próprios pais. A visão idealizada que temos dos mesmos pode nos manter presos numa infantilidade nociva, a qual, de um modo geral, somente um choque profundo rompe com a fantasia e dependência, nos permitindo tornar adultos. Há momentos em a vida faz isso por si mesma. Aposto, por exemplo, que os filhos de alguns corruptos famosos de nossa política não possuíam uma visão negativa de seus pais. Chamá-los de cretinos e ladrões deveria ofendê-los profundamente. Mas há casos em que ver nossos genitores de uma forma crítica não contribui em nada para o avanço e justiça da sociedade, mas somente para o nosso próprio desenvolvimento. Nestes casos, a dor e energia necessária para observá-los sem o “véu da inocência” se tornam gigantescas e não o faríamos se não fosse por uma aguda necessidade íntíma de auto-realização.
10. Todo o ambiente estava preparado. A sequência do sonho apresenta a solução do enigma dos inúmeros contos a respeito de casas mal-assombradas. Uma casa estranha e antiga, simbolizando familiaridade e desconhecimento, surpresas e possibilidades; a necessidade de apoio e esclarecimento. Nestas horas pensamos naturalmente em nossos pais. É pra onde nos voltamos quando a vida se torna dura e não receptiva; pra quando estamos numa encruzilhada moral. Mas estes pais adentram a sala diante de Marcos e se mostram completamente diferentes. O choque que ele sofre parece é fora de propósito ou, extremamente exagerado, se não considerarmos o caráter simbólico de toda esta experiência. Seu inconsciente lhe apresenta, justamente através de seu irmão pensativo (função psicológica que ele reprimia) o lado oculto de seus pais. Em tratamentos psicológicos eu pude observar, mais de uma vez, o quanto as pessoas “surtam” quando falam de seus familiares de uma forma crítica. Certos pacientes choravam, outros simplesmente emudeciam, outros optavam por permanecer na ignorância e paravam com a terapia. Havia aqueles que ficavam irritados durante toda a sessão e os que fingiam não se importar, mas não conseguiam disfarçar por muito tempo. O choque que Marcos levou foi bastante natural, portanto, para qualquer psicólogo com um pouco de experiência clínica.
11. A fuga da situação se faz através de uma queda, na montanha-russa, que simboliza a liberdade de voar e correr mas limitado pela fantasia. Em outras palavras, Marcos evitava aquele confrotno fugindo para uma liberdade ilusória. A sensação de queda é comum no acordar dos sonhos de muitas pessoas. O inconsciente não deixa de ser um aqui ou um alí para nossa psique, e por isso aparece num nível diferente perante a consciência. Sair correndo do lado oculto de nossos pais é algo que o leitor deve estar estranhando completamente, mas por hora sugiro a lembrança dos ínumeros temas relacionados a bruxas e madrastas, em que a imagem materna se mostra nociva e perseguidora, ostensivamente. No blog blueshell.blogspot.com/2004_07_01_archive.html, o autor expressa exatamente a mesma temática, com o mesmo contexto psicológico, inclusive utilizando, sincronisticamente, a mesma figura do casarão de madeira, a queda da escadaria, a fuga da mulher e a busca pela liberdade. Ressalto que só conheci o blog do Blue Shell quando já procurava fotos para ilustrar este post.
12. O sonho de Marcos denunciava, de certa forma, o encontro com aquelas imagens fascinantes do inconsciente coletivo, já antigas conhecidas do psicólogo analítico, que se apresentam como conteúdos divinos ou diabólicos para nossa consciência, personificadas, segundo minha experiência, nas reuniões mediúnicas, na forma de certas comunicações de “sabedoria, prudência e verdade”, que se fazem valer na boca de jovens como Marcos. Através da mediunidade ele também pode tomar contato com essas imagens várias vezes. O contato com elas, semanalmente, equivalia a uma espécie de insight, produzindo uma sensação de paz e harmonia consigo mesmo e a vida. É como se ele tivesse encontrado um Cristo ou uma Santa Maria, só que agora dentro da lógica espírita, que mantém uma relação sagrada com certos seres que, teoricamente, são seres humanos, que um dia já foram inferiores como nós, mas agora são tão elevados que quase não podemos ser como eles. Curiosamente essa forma de vê-los também nos é comum quando somos crianças e falamos empolgados a respeito de nossos pais. O não confronto com os dois lados dessas imagens psicológicas, nos leva a uma atitude infantil perante a vida, pois a totalidade da psique não se faz apenas integrando a “luz”, mas igualmente sua “sombra” correspondente. Essa falta de confronto com a sombra também é característica das reuniões mediúnicas, já que raramente eu ouvia um participante reconhecendo as próprias fraquezas como sendo próprias, uma vez que os desequilíbrios graves são sempre culpa dos espíritos. Nos casos clínicos é possível observar como esta fuga do aspecto sombrio do inconsciente produz toda sorte de comportamentos compulsivos e pensamentos obsessivos. Ao invés dos espíritos, a culpa recai nos pais, no vizinho, no patrão, na esposa, etc. Ressalto que um psicólogo em ambientes religiosos acaba sendo o confidente deste outro lado das pessoas, onde certas perversões sexuais e comportamentos agressivos se chocam, periodicamente, com a vida elevada que almejam alcançar.
Continua…
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